Rios de suor ignoravam o frescor da madrugada e se juntavam ao cansaço desproporcional daquela senhora de peso exagerado se esforçando para acelerar o passo. Balançando as carnes, bufava alto e gesticulava para um motorista impaciente. Perder o ônibus significava esperar outros seis meses. Acomodada na poltrona da janela, Dona Antônia gritou reforçando o pedido da vizinha suada e conseguiu fazer o condutor desengatar o carro, mas não impediu engatar a cara feia de autoridade desrespeitada. Quando viu duas perninhas curtas da pelejando e alcançando o degrau alto da condução sabe-se lá como, respirou aliviada: sem poder levar acompanhante, a vizinha seria sua segurança quando o médico fizesse as perguntas para as quais não lembraria as respostas.

Com todos os lugares ocupados e os bagageiros abarrotados de sacolas plásticas, começava a jornada de duzentos quilômetros até o ambulatório de especialidades com seu atraso convencional. Crianças demasiadamente agasalhadas dormiam entre peitos, cobertores, mamadeiras e biscoitos de polvilho. Velhos juntavam suas dores nas costas, suas tonturas, faltas de ar e paralisias ao jejum para a coleta de exames. Todos passariam o dia fora de casa. Os mais felizardos comeriam coxinha dividindo tubaína de dois litros e os outros raspariam marmitas feitas de véspera. Aquela nunca esteve nos anúncios do YouTube e Dona Antônia sabia muito bem disso. Há seis anos peregrinava em intervalos de três ou seis meses.

Reclamões ouviam sermão da veterana: “Vocês não sabem quanto martírio já enfrentamos. Hoje estamos no céu e vocês reclamam. É bom agradecer prefeito e pessoal da saúde. Antes não tinha banheiro, nem esse luxo de ar condicionado. A gente chegava fedendo a mijo e vômito. Muito diferente… Hoje é muito melhor. Nem de carro próprio é tão bom!!! Cambada de mal agradecidos!!!” Suas intervenções acalmavam sacolejos e solavancos do ônibus novo. Só não mudava a cara do motorista, o grande capitão, a máxima autoridade da aventura malsã. Dona Antônia se aquietava para repetir a contagem dos remédios e conferir os exames, num medo indisfarçável. Ela não queria tomar outro pito do médico. “O coitado não tem tempo de conversar com os pacientes. Tem muita gente para atender. Se ele não correr na consulta vai acabar se atrasando”, pensava se justificando.

A ordem do capitão-motorista era clara:

– “Vai descer primeiro quem tem exame de urina pra fazer”, mostrando seu único sinal de humanidade, antes de franzir a testa e avisar o horário da volta. – “Fecho a porta às cinco horas. Quem entrou, entrou. Quem não entrou, azar!”

Dona Antônia agarrou o braço da vizinha gorda buscando um destino comum. Agradeceu a Deus mais uma vez pelo fato de poder contar com uma companhia. Antes de encerrar sua prece, aproveitou para mais um pedido: Não deixar coincidir o horário das consultas. A distribuição das senhas já tinha começado, e isso significava maior tempo de espera. Resignada, apaziguava: “Agradeça! Já pensou se estivéssemos de bexiga cheia? Pudemos até tomar café. Não importa se frio ou quente. Agradeça a Deus!”. Entre graças e bendizeres, cada qual encontrou seu corredor e pôde aguardar sentada para ser chamada.

          Dona Antônia engoliu três horas e meia de banco sem deixar de agradecer pelos últimos sessenta minutos no ar condicionado. Não escutou chamarem seu nome. Viu retardatários entrarem antes dela, mas não reclamou. Com o papelzinho na mão viu o corredor esvaziando. Ninguém explicou a mudança. Acostumada a ouvir seu nome ser gritado, não sabia atender a chamada pela número aparecendo na TV. Não perdeu a vez graças à chegada da vizinha. O semblante indiferente do médico com olhar fixo no computador fizeram seu coração disparar e brotar medo na garganta. Colocou os resultados dos exames na mesa antes de atrever-se a sentar diante dele e esperar. Cara na tela, o especialista folheou rápido os papéis e digitou a receita. Dona Antônia ia se queixar da persistência das dores, mas desistiu. Culpada! Ela havia deixado passar a vez.

         O médico juntou as doze guias, arrastou a cadeira e saiu. Já no corredor lembrou-se de uma dúvida antiga e prometeu a si mesmo pesquisar o assunto quando tivesse tempo. Colocou os papéis num escaninho, olhou para o relógio e percebeu estar cinco minutos adiantado. Procurou o café até completar o horário e poder passar a digital. Pensou no relógio de ponto e teve saudades. Entre o ambulatório e o estacionamento precisava passar por pessoas sentadas. Reconheceu uma delas. Lembrou-se da discussão acontecida quando ela ficou descontente com o tratamento. Resignado, admitiu ser necessário empatia para obter sucesso no diagnóstico e na terapêutica, mas desculpou-se por não haver tempo suficiente para este tipo de conduta. Cruzou com um colega antes de entrar no carro e relatou a felicidade pela resolução de um caso difícil, ressaltando os parabéns recebidos da chefia. Era justa a sua fama de estudioso. Seus pares o reconheciam por mérito.

         Dona Antônia não perdeu o ônibus de volta. Graças a deus não perdera a consulta.

O médico Manoel Paz Landim foi um dos autores do texto publicado nas páginas 120 a 122

Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)

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